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CABELOS BRANCOS

De: Frei Betto

25/04/2024 às 22h50 Atualizada em 25/04/2024 às 23h09
Por: Colunista Fonte: Site freibetto.org
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Foto: Reprodução internet
Foto: Reprodução internet

Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Politica. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos. 
      Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?
      É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. Para vice de Boulos, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro próximo, o PT precisou importar uma mulher filiada a outro partido: Marta Suplicy, que fará 80 anos em março de 2025.

      No Rio, o PT parece não ter quem indicar para possível vice na chapa do prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição. Tende a importar Anielle Franco, do PSOL. 
      Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos brancos.

      Nós, da esquerda, estamos acuados. Como diz a canção de Belchior, “minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos (...) como os nossos pais”. “Nossos ídolos ainda são os mesmos”. E não vemos que “o novo sempre vem”. 
      A queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente assegurada. E o capitalismo, gato de sete fôlegos, inovou-se pelos avanços da ciência e da tecnologia e, sobretudo, do neoliberalismo. 

      Primeiro, a privatização do patrimônio público; em seguida, das instituições sociais, reduzidas a duas por Margaret Tchatcher: o Estado e a família. E, por fim, o cidadão foi despido de seu manto aristotélico e condenado a ser mero consumista, inclusive de si mesmo ao passar horas a se mirar no espelho narcísico das redes digitais. 

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      Há uma progressiva despolitização da sociedade. A direita é como uma maré que sobe e ameaça afogar o que nos resta de democracia liberal. Basta dizer que um dos três programas de maior audiência da TV Globo e, portanto, de faturamento, é o BBB, que bem espelha os tempos em que vivemos: ali são explícitas as regras do sistema capitalista. O único objetivo é competir. Todos sabem que, ao final, apenas uma pessoa haverá de amealhar o pote de ouro. E a missão dos concorrentes é cada um fazer tudo para que seus pares sejam eliminados. É o que milhões de adolescentes aprendem ao perder horas assistindo àquele simulacro de “O anjo exterminador”, de Buñuel.

      Na esquerda “ainda somos os mesmos”. Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder. Abandonamos as favelas, as zonas rurais de pobreza, os movimentos de bairros. E não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista. 

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      Não sabemos como reagir diante do fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios. Fundamentalismo que apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado. Eliminado o pecado, irrompe a prosperidade, que empodera e favorece o domínio: a confessionalização das instituições públicas; a deslaicização do Estado; a neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam “a moral e os bons costumes” dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos.

      Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!
 
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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