Há séculos, um ciclo da natureza se repete entre os meses de novembro e março na maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Neste período do ano, centenas de milhares de ouriços caem de vários metros de altura até tocarem o chão, cheios de castanha. A coleta da amêndoa é responsável por movimentar a economia, fortalecer uma das mais tradicionais atividades extrativistas que perpassa gerações e, acima de tudo, reafirmar o valor imensurável da floresta em pé.
Localizado no Projeto de Assentamento Extrativista Chico Mendes, em Xapuri, o Seringal Cachoeira possui uma das maiores concentrações de castanheiras nativas do mundo. A região está entre as que lideram a produção de castanha no Acre.
Proprietário de uma área de 372 hectares, Antônio Teixeira Mendes é um dos mais antigos moradores do Seringal Cachoeira. A história quase centenária da família de Duda, como é mais conhecido, está diretamente ligada ao extrativismo. O avô e o pai dele vieram do Ceará para o Acre nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial, onde lutaram como soldados da borracha.
O homem de 62 anos de idade herdou a profissão de seringueiro do pai. Aprendeu o ofício quando era criança, e foi da borracha que sustentou a própria família. Duda só começou a coletar castanha na década de 1970, período em que o fruto passou a ser mais valorizado e demandado em larga escala pelo mercado, principalmente para atender a indústria alimentícia.
“Contando meu avô, meu pai e eu, já estamos há mais de 80 anos mexendo com o extrativismo. Por isso, a floresta é muito significativa para mim. Nesse tempo todo vivendo aqui dentro, a gente aprendeu a sobreviver com ela e sem tratá-la mal, porque é daqui que tiramos o nosso alimento”, afirmou.
Duda tem catalogadas 576 castanheiras produtivas em sua propriedade. Na safra passada, coletou 1.060 latas da amêndoa, o equivalente a 11,6 toneladas do produto.
Nos últimos anos, Duda adotou o sistema de meia. Ele fica com a metade do lucro e outros 50% são divididos entre os extrativistas que coletam a castanha em suas terras. Em 2023, o trabalho está sob a responsabilidade do genro, Hudson Barbosa Lopes, e de Adenilson Oliveira de Souza.
Até o fim do próximo do mês, a rotina de Hudson será praticamente a mesma. No alvorecer do dia, por volta de 5h30, o morador do Seringal Nova Esperança – Colocação Barcelona III desperta. Para quebrar o jejum e encarar a longa jornada, a comida é reforçada: arroz, feijão, carne e farofa não podem faltar.
Com o mão de onça para coletar os ouriços do chão e o paneiro nas costas para armazenar os frutos, dois equipamentos feitos artesanalmente, Hudson percorre cerca de cinco quilômetros dentro dos varadouros, que são pequenas trilhas abertas dentro da floresta. Das 7h da manhã até às 15h, ele e o colega Adenilson quebram, com a ajuda de uma foice amolada, de 80 a 100 latas, por dia.
“Sei que o serviço é duro, mas isso aqui é tudo para mim. Não tenho a mínima ideia de como seria minha vida na cidade. Eu me sinto muito feliz de estar aqui dentro fazendo o que gosto”, revela o extrativista.
Por causa de fatores climáticos atípicos, a produtividade deste ano deve ficar abaixo da safra anterior. “Aquela friagem de novembro atrapalhou o início das chuvas e as castanheiras precisam de água para dar o fruto. Como fez muito calor, acredito que vai ter uma quebra de 10% na produção”, relata.
A coleta da castanha é uma atividade envolta de riscos. É preciso estar sempre atento para evitar acidentes que, em alguns casos, podem levar à morte. Por muito pouco, Avelino Rodrigues Monteiro não perdeu a vida no dia 26 de janeiro de 1985.
Na época, o extrativista tinha pausado o conserto do assoalho de um armazém para ir almoçar. O caminho para casa passava por uma castanheira. O homem tinha conhecimento do perigo e mesmo após desviar da frondosa árvore, sentiu o forte impacto na região da cabeça. Um ouriço tinha o acertado em cheio.
“Estava com meu filho mais velho e quando chegamos perto, peguei no braço dele para arrodear a castanheira, e foi aí que aconteceu. Na hora, eu fiquei cego por uns 30 segundos, mas não desmaiei. Peguei 13 pontos na cabeça e fiquei uns seis meses sem passar perto de castanheira. Foi um milagre dos grandes de Deus na minha vida”, relembra.
Também é preciso ficar atento com animais venenosos. “Uma vez, estava pegando castanha quando vi o bote de uma cobra pico de jaca. Graças a Deus, acertou só na minha calça. Se ela tivesse me acertado, não teria como pedir socorro e iria morrer dentro da mata”, pontuou Duda Mendes.
Moradora do Ramal São José – Colocação Samaúma, Ana Nascimento procurou a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (Cooperxapuri) para vender a castanha coletada pelo marido. Pelas 25,5 latas, a extrativista esperava receber mais, porém o valor ficou abaixo do esperado. “Ano passado o preço estava muito bom. Esse é um dinheiro extra que entra para nós e acaba ajudando, também”, comentou.
Fatores externos têm contribuído com a queda do preço da castanha, que este ano não ultrapassou os R$ 45, a lata, bem diferente de 2022, quando o produto chegou a ser vendido a R$ 90. A guerra entre Ucrânia e Rússia, nações que consomem a amêndoa amazônica, tem contribuído com a demanda reprimida.
Além disso, a perda do selo de exportação da Bolívia e a crise política enfrentada no Peru agravaram a situação. Os países andinos são os principais importadores da castanha produzida no Acre.
“A pandemia também represou muita castanha. Por conta disso, o preço despencou. A nossa expectativa é que o mercado volte a aquecer. Este ano, estamos fazendo uma compra alta de matéria-prima porque acreditamos na recuperação dos nossos contratos”, explicou Sebastião Aquino, presidente da Cooperxapuri.
Com cerca de 140 cooperados e uma clientela de 400 extrativistas, a Cooperxapuri é responsável por comprar a maior parte dos produtos oriundos da floresta, principalmente borracha e castanha. “Nossos maiores clientes são a Nestlé, Veja [fabricante de calçados] e a Natura”, disse Aquino.
A castanha foi o terceiro produto mais exportado no Acre, em 2022. Entre janeiro e dezembro, a venda da amêndoa somou US$ 9,7 milhões. O montante contribuiu para que a balança comercial fechasse o ano com saldo positivo de US$ 5,2 milhões.
O governo do Estado reconhece a relevância da castanha para economia acreana. Por meio da Secretaria de Produção e Agricultura, políticas públicas para agregar valor ao fruto foram implementadas, assim como a oferta de cursos aos trabalhadores da floresta.
“O governo tem feito sua parte no apoio à cadeia produtiva e buscando formas de valorizar, cada vez mais, a nossa castanha. Além disso, nos últimos anos, promovemos capacitações junto aos nossos extrativistas de boas práticas de coleta e armazém da produção. Estamos estudando a possibilidade de subsidiar a castanha, assim como já ocorre com a borracha”, enfatizou José Luís Tchê, gestor da pasta.
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