O prazo para que as empresas possam se adaptar ao novo sistema de tributação, com a adoção do IVA dual (CBS e IBS), foi considerado muito curto pelos participantes da última audiência promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), nesta quarta-feira (27), encerrando o ciclo de 13 rodadas de debates solicitado pelo relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), para instruir o primeiro projeto de regulamentação da reforma tributária ( PLP 68/2024 ). Entre as outras preocupações sobre a fase de transição da reforma estão a harmonização entre os normativos das administrações tributárias das três esferas ( federal, estadual e municipal) e a possibilidade de entendimentos divergentes na fiscalização de um mesmo contribuinte Pessoa Jurídica.
Do ponto de vista do poder público, a transição durará até 2077, em razão das adaptações da partilha dos tributos entre os entes federativos. A União deve desembolsar R$ 160 bilhões entre 2025 e 2032 para o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais, que compensará as pessoas jurídicas e físicas pela redução dos benefícios concedidos pelas unidades federativas em função da proibição de que estados instituam novas exceções ao regime regular do IBS. Além disso, haverá o Fundo Nacional Desenvolvimento Regional (FNDR), para reduzir as desigualdades regionais e sociais.
Para os contribuintes, o período de transição vai até 2033, quando os novos tributos serão definitivamente implementados. O regime de transição buscará fazer com que os tributos de valor agregado — Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — mantenham a arrecadação dos atuais PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI. Além disso, haverá um teto de referência para os novos tributos aplicado em 2030 e em 2035 para mitigar um possível aumento excessivo na carga tributária.
O auditor fiscal Ricardo Oliveira de Souza, que representou o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) na reunião, explicou que a fase atual é de elaboração dos projetos de regulamentação da reforma. Além do PLP 68/2024, tema da audiência, há o PLP 108/2024 , que trata do comitê gestor do IBS, que deve ser analisado pelo Senado. Depois da aprovação dos textos, haverá o desenvolvimento do sistema de cobrança dos novos tributos para que o início da cobrança entre em fase de teste. (Ver quadro)
— Em 2026 nós temos o ano teste das alíquotas de CBS, com uma alíquota de 0,9% e de IBS, com uma alíquota de 0,1%, e isso é para testar o efetivo potencial arrecadatório desses tributos recém-criados, especialmente em face da aplicação do conceito de base ampla e também do creditamento financeiro pleno. Esses efeitos é que precisam ser aferidos, por isso a necessidade da alíquota teste — explicou.
Uma das preocupações manifestadas por participantes da audiência foi justamente com o prazo curto para que as empresas se adaptem ao novo sistema. A secretária-executiva do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), Zabetta Gorissen, disse que a regulamentação infralegal, considerada ainda mais complexa que o projeto de lei complementar, deve ser feita no primeiro semestre de 2025. Os testes da nota fiscal eletrônica são previstos a partir de outubro, o que deixará um prazo de apenas três meses para que os contribuintes adaptem sistemas, documentos e orçamentos, além do treinamento de pessoal.
— Realmente fica muito desafiador você pensar que é possível ou viável se implementar em três meses todo esse novo modelo e a questão não é nem de carga tributária, de pagamento de tributo, mas de sistemas. (...) Nós não temos empresas de software para atender todo o país entrando em um novo sistema no mesmo dia, em janeiro de 2026 — alertou.
A sugestão do Getap é a prorrogação do prazo de implementação para 2027 ou a dispensa de multas pelo descumprimento das obrigações acessórias ou principais durante o ano de 2026. O grupo sugere que o ano de 2026 seja de testes para contribuintes, como um projeto piloto.
Vários participantes também defenderam uma clareza maior no texto no que diz respeito à competência para fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias. A intenção é garantir a simplicidade, um dos principais objetivos da reforma. As regras preveem que a fiscalização será feita pela Receita Federal no caso da CBS, e pelas autoridades fiscais de estados, Distrito Federal e municípios no caso do IBS. Com isso, haverá muitas possibilidades de interpretação das regras.
Márcio Schuch, representante do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), explicou que o Comitê Gestor do IBS pode ajudar a harmonizar essas interpretações, mas defendeu ajustes no texto para garantir que essa harmonização seja mais efetiva. Um deles é a determinação de que a autoridade fiscal consulte o que já foi decidido antes por outro ente no mesmo caso, para evitar que um contribuinte seja submetido a interpretações divergentes sobre o mesmo fato econômico.
— O que a gente sugere é que a autoridade fiscal deve consultar o ambiente que já está lá previsto no texto. Antes de iniciar a sua fiscalização ou lavrar o seu auto, ela deve primeiro analisar aquilo que já foi feito pelo outro ente (...). Que as autoridades tributárias, na sua atuação, façam essa consulta prévia para que a gente não fique sujeito a uma desarmonização e a um custo tributário muito alto para os contribuintes.
Na mesma linha, a advogada tributarista Mary Elbe Queiroz, presidente do Centro Nacional para Prevenção e Resolução de Conflitos Tributários (Cenapret), defendeu a obrigatoriedade de que o Ministério da Fazenda e o Comitê Gestor do IBS celebrem convênios para delegação recíproca do julgamento de contenciosos relativos aos novos tributos, já que no texto atual essa celebração consta apenas como uma possibilidade. Para ela, a falta de uma harmonização nos entendimentos vai gerar prejuízos ao contribuinte.
— Quem vai sofrer com isso? O pagador de imposto, a empresa, os negócios. E para que era a reforma? A reforma era para simplificar, para evitar litígios, para haver uma cooperação entre fisco e contribuinte, não era só entre os fiscos. Então se nós temos uma lei só, com a materialidade igual para IBS, não se pode divorciar na interpretação, fiscalização e julgamento — argumentou a advogada, ao afirmar que, na pressa de aprovar um texto legal, pontos fundamentais podem acabar sendo deixados de fora.
A preocupação com essa divergência de entendimentos também foi manifestada por Rodrigo Keidel Spada, presidente da Associação Nacional de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite).
O consultor Lucas Carezzato Ayres, do Movimento Brasil Competitivo (MBC), apresentou várias sugestões de alteração no texto feitas pela entidade, que reúne grandes representantes do setor produtivo. Algumas delas, explicou, já foram apresentadas como emendas por senadores. Entre essas sugestões está a possibilidade de que o contribuinte possa fazer a retificação dos documentos fiscais para corrigir erros e omissões, evitando assim sanções, já que as adaptações ao novo sistema são complexas.
Ele também reivindicou uma alteração no texto para garantir ao contribuinte a possibilidade de compensação de créditos do PIS, Cofins e IPI após o período de transição.
— A gente vê com muita preocupação o fato de esses créditos homologados de PIS/Cofins e IPI se perderem depois da transição. A gente sabe que decisões judiciais demoram para transitar em julgado. Muitos desses casos ainda vão continuar em debate ao longo do período de transição e muitas vezes o contribuinte vai ter o seu crédito homologado, mas não vai conseguir aproveitar porque chegará o fim da transição. Nossa proposta de texto é para que, mesmo após a transição, esses créditos possam ser compensados — sugeriu.
Em resposta a essas demandas, a secretária especial adjunta da Receita Federal do Brasil, Adriana Gomes Rêgo, afirmou que a intenção é dar ao contribuinte a possibilidade de fazer correções e regularizar a situação. Para ela, se isso não ficou claro no texto da reforma há, sim, a necessidade de que fique claro na regulamentação.
— A apuração assistida é mostrar para o contribuinte aquela apuração, para ele ratificar ou não. Mas sempre se pensou nisso e eu acho que se não está claro, na regulamentação isso tem que vir [com clareza] (...). Com certeza há um estímulo sim, como ninguém quer litígio, à conformidade, ao cumprimento espontâneo. Acho que precisamos caprichar mais nessa parte – disse a secretária.
Ela também afirmou que a parte dos créditos vai ser tema de lei ordinária, mas garantiu que haverá a possibilidade do aproveitamento desses créditos mesmo após o fim da transição.
Com relação às demandas feitas pelos outros participantes, ela disse que a harmonização foi uma preocupação constante durante a elaboração do texto e que o ideal é não haver litígios, já que eles custam caro para as administrações tributárias. A intenção da Receita, de acordo com a secretária, é que os novos sistemas das notas eletrônicas estejam disponíveis em meados de 2025, para que haja tempo de adaptação para as empresas.
O deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR), reconhecido especialista em reforma tributária, afirmou que as pessoas estão pensando na reforma com base no modelo atual, que vai deixar de existir.
Com a regulamentação, a apropriação do crédito por uma empresa só se dará após o efetivo recolhimento do tributo. Se a empresa vendedora sonegar o tributo, a empresa compradora não poderá reaver o valor do tributo pago. Na visão do deputado, no novo sistema, com o recolhimento automático de tributos no ato da liquidação do pagamento, cada empresa será a garantidora de que não haverá sonegação.
— No mais, eu vejo que o projeto está bom, está indo bem e, com pequenas correções que serão feitas pelo Senado, estará apto a ser votado e voltar para a Câmara ainda este ano — afirmou Hauly, que tem acompanhado todas as audiências realizadas pela CCJ.
A presidente do projeto Mulheres no Tributário, Francine Fachinello, destacou a necessidade de mudar o paradigma de rivalidade entre o Fisco e o contribuinte, com a visão de um Leão de um lado versus um mau pagador de outro. De acordo com a tributarista, desde 2013 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defende uma cultura cooperativa entre os fiscos e os contribuintes.
Para Francine, é preciso separar os sonegadores e os fraudadores dos bons contribuintes. Mais de 90 % dos contribuintes, acrescentou, são "bons pagadores". Alguns acabam deixando de fazer pagamentos ou cometem infrações em virtude um sistema tributário muito complexo. Ela afirmou que a reforma tributária e a sua regulamentação são uma oportunidade para mudar o atual paradigma.
O presidente da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais (Fenafim) demonstrou preocupação com os efeitos das regras de transição sobre os municípios. Ele apontou que poucos entes terão um aumento de receita, em detrimento da maioria de entes perdedores, que necessitam dos recursos para não comprometerem serviços públicos essenciais.
— A gente quer pedir aos senadores que abram nossos estudos, para os consultores legislativos, os Tribunais de Contas, o Ministério de Fazenda, para quem interessar. A gente quer dar transparência a isso porque os impactos nos municípios serão expressivos e as consequências serão desastrosas — lamentou.
Além dos debatedores citados, também participou da audiência o representante do presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas. O auditor Rafael Gomes Lima, chefe adjunto da Auditoria Fiscal do TCU, falou sobre as novas competências do tribunal em razão da reforma tributária.